O livro de Juan José Millás "O mundo", é uma autobiografia misturada a imaginação de um menino que viveu uma dura infância. Nele se confundem o que realmente aconteceu, com a imaginação do autor ao escrever o romance, que era para ser somente uma reportagem dele mesmo,
"de modo que comecei a me seguir para estudar meus hábitos. Nesses devaneios, um dia me disse: 'Meu pai tinha uma oficina de aparelhos de eletromedicina'. Então me apareceu a oficina, comigo e com meu pai dentro. Ele estava testando um bisturi elétrico sobre um pedaço de carne de vaca. Subitamente, me disse: 'Olha Juanjo, cauteriza a ferida no mesmo momento em que a produz'. Compreendi que a escrita, como o bisturi de meu pai, cicatrizavam as feridas no mesmo instante em que se abria e intuí por que era escritor. Não fui capaz de fazer a reportagem: acabava de ser atropelado por um romance."
O livro conta a história de um menino pobre, com um monte de irmãos, que sofreu as dores da perda, da morte, do amor, das surras, da tristeza, da pobreza, do frio, da solidão, da decepção, enfim... Sobreviveu porque tinha imaginação, e a usava para fugir da vida real.
"Depois de comer, entrava no vão da escada, que tinha também algo de nicho. Muitas vezes, o trânsito do sono à vigília era tão insensível como a passagem do estado sólido ao líquido no gelo. Teria a água memória do gelo? Guardava eu memória dos sonhos? Talvez não, porque ao despertar continuava neles."
Teve um amigo, e juntos descobriram um pouco do colorido que possa talvez existir no mundo, "Lembro que passou a nosso lado um cachorro que observei como se se tratasse do primeiro cachorro da Criação. Nunca um animal dessa espécie havia reclamado minha atenção daquele modo. Ao parar para mijar, levantando a pata, nos observou assombrado da mesma forma que nós, que o observávamos. Quero dizer que se tratava de um assombro de ida e volta, um assombro que compartilhávamos com a normalidade com que compartilhávamos a rua, como se o cachorro e nós fôssemos extensões da mesma substância. O Vitaminas e eu nos olhamos e começamos a rir, mas seu riso e o meu eram também os mesmos. Tratava-se de um riso colocado no mundo para ser compartilhado."
Viveu uma paixão de menino, um amor que nunca esqueceu.
"Então compreendi de súbito que nos apaixonamos pelo habitante secreto da pessoa amada, que a pessoa amada é o veículo de outras presenças das quais ela nem sequer é consciente. Por quem teria que estar eu habitado para despertar o desejo de Maria José?"
O romance é maravilhoso, não perca a oportunidade de lê-lo de viver tamanha dor, pois "Às vezes, nos romances se infiltram fragmentos de realidade que deixam manchas de umidade, como uma goteira na parede de um quarto", e sentir tudo isso ao ler faz com que pensemos e recordemos a nossa própria infância, o nosso próprio amadurecer, e talvez percebamos que fomos feliz demais.
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